Memória e esquecimento
 
"E na lembrança me firmei para não cair"
Reminiscências - José Gilberto Gaspar
 
No seu ensaio sobre A Unidade da Idéia de Homem em Diferentes Culturas, o Prof. Jean Lauand nos diz que na língua árabe é a mesma palavra que designa o ser humano e aquele que esquece: Insan. A idéia do ser humano ser um esquecedor é compartilhada por diversas tradições, no oriente e no ocidente.
Na concepção indiana do caminho da Humanidade, que se desdobra ao longo de quatro idades chamadas Yugas, a passagem de um Yuga para outro se dá, fundamentalmente, pela perda de memória das coisas essenciais, chegando a proporções particularmente vultosas no último dos quatro Yugas, o Kali Yuga. Existem interpretações diversas quanto à duração desse período, provavelmente vários milhares de anos, já muitas sábios e estudiosos concordam em localizar nele a época atual.
As sociedades tradicionais, em particular aquelas de transmissão oral, desenvolveram uma pedagogia do lembrar, uma pedagogia baseada na memorização de grafismos, provérbios, contos, canções, gestos, festas... Esse recurso, hoje depreciado quando não esquecido, faz uso da sabedoria do coração. É nele que o conhecimento é gravado. É nele que se unem conhecimento e amor. Fala-se, em português, saber algo de cor(ação), em francês savoir par coeur, em inglês know by heart. "Sabemos de cor o que está em nosso coração", "Inesquecível é o que amamos", nos lembra o Prof. Jean Lauand.
As nossas memórias nos ajudam a perceber quem somos individual e socialmente. É um recurso fundamental. Sem memórias perdemos o chão, somos mais frágeis, mais facilmente manipuláveis. O número de pessoas acometidas pelo esquecimento de sua história pessoal aumenta, por motivos variados. Desvalorização do passado, traumas, estresse, doenças, velhice, podem levar a uma perda de memória parcial ou total, temporária ou permanente.
Nas culturas ocidentais o esquecimento se estende freqüentemente aos antepassados e não cuidamos de sua memória- mal sabemos quem foram nossos bisavôs. Por sua vez, os fatos históricos, embora disponíveis e acessíveis como nunca, são interpretados a partir da lente de ideologias diversas, às vezes contraditórias, o que torna difícil uma apreciação e uma apropriação consistentes das informações. Enfim, no campo da espiritualidade, os valores mais universais, generosos, respeitosos das diferenças e particularidades, se perdem às vezes nas nevoas do Kali Yuga, deixando lugar a ideologias fundamentalistas.
Felizmente, algumas pessoas conseguem cuidar da memória, para si e para todos. Foi o caso, por exemplo, de Amadou Hampâtê Bâ, coletor de tradições, que registrou no papel muitos contos africanos de sabedoria, antes transmitidos oralmente. As lendas, mitos e contos de sabedoria têm essa finalidade, qualquer que seja sua origem no espaço e no tempo. É o caso igualmente de Howard Crowhurst que, apoiando-se na matemática e na geometria, decodifica as construções megalíticas espalhadas pelo mundo. Quando, ao uso de seus cálculos, ele soma uma aproximação entre as culturas distantes da Bretanha e do Egito, ele traz sentido à mais antiga procissão ainda existente na Europa: a Troménie de Locronan. Essa procissão vinha sendo reproduzida a cada 6 anos, ao longo no mínimo dos últimos 1500 anos, mesmo sem que os participantes soubessem seu significado profundo.
Finalmente, em meio a esquecimentos e confusões, fica por conta de cada ser humano dedicar-se à busca de memórias relevantes, descobrir confiáveis pesquisadores desses territórios, encontrar em si sua própria bússola.